Polanyi, Braudel, Wallerstein
Ministrante do curso
10-15 minutos de leitura
Até onde sei, a expressão longo século XIX é de Wallerstein, bem como a periodização heterodoxa que a acompanha, pois afinal se trataria de um século quase bicentenário (…).”
ARANTES, Paulo. Extraído do ensaio O novo tempo do mundo.
(…) Se há datas que obedecem a algo mais que a necessidade de periodização, agosto de 1914 é uma delas: foi considerado o marco do fim do mundo feito por e para a burguesia. Assinala o fim do “longo século XIX” com o qual os historiadores aprenderam a trabalhar, e que foi objeto de três volumes dos quais o presente é o último.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios: 1875-1914.[1]
Ministrante do curso
Capitalismo em Perspectiva: uma introdução ao sistema-mundo
Primeiro texto de uma série.
10-15 minutos de leitura
Talvez uma das maiores dificuldades em se compreender de uma maneira acessível no que consiste essa abordagem proposta por Wallerstein seria “o âmbito disciplinar da análise dos sistemas-mundiais – que é encontrado em todas as ciências sociais – aqui amplamente concebido para incluir a história, que muitos colocariam nas humanidades” [2]. Assim, a qualidade inter e multidisciplinar de análise compartilhada por Wallerstein e seus colaboradores (tal como apresentada em Para abrir as ciências sociais [3] ) seria, portanto, o maior obstáculo na divulgação da análise de sistemas-mundiais.
Haveria algum modo de perfazer um caminho menos árido para se compreender a proposta da análise wallersteiniana? Talvez um modo de compreender as “ideias centrais” por trás de tal análise e da noção de “sistema-mundo” seja pela elaboração de um itinerário através das principais influências que atravessam a construção das obras do sociólogo americano. Decerto, não podemos cobrir todas as contribuições que as inspiraram [4] – mas podemos rastrear, por meio de suas principais influências intelectuais, um itinerário capaz de expor as principais questões que a atravessaram [5].
E quais seriam as principais influências de Wallerstein? Nos tempos em que elaborava os pilares do que viria a ser a análise histórica do sistema-mundo, podemos dizer que três grandes figuras e suas respectivas obras o marcaram profundamente: Karl Polanyi, Franz Fanon e Fernand Braudel [6]. Grosso modo, podemos sintetizar essas heranças do seguinte modo:
1. Com Fanon, Wallerstein compreendeu que a noção de classe não é universal no tempo e no espaço. Em sua leitura, quando Fanon aplicou termos marxistas ao mundo colonial, ele redefiniu-os radicalmente – num contexto muito divergente daquele do mundo europeu. Assim, Wallerstein “concluiu” que não somente os conceitos de classe europeus não se ajustavam bem à realidade pós-colonial, como também se transformaram ao longo dos séculos. Após essa inspiração advinda de suas leituras da obra de Fanon e suas experiências formacionais como um sociólogo africanista, identificaria em sua obra amadurecida o problema da não-universalidade das classes sociais e das pluriformes relações de exploração numa variedade de contextos: das formações de centro/semi-periferia/periferia, passando por questões relativas aos estados-nacionais, transcorrendo as várias formações do status socio-econômico na realidade capitalista e indo até fatores relativos propriamente à produção econômica [7].
2. Com Polanyi, aprende que o capitalismo em seu estágio amadurecido – ou seja, aquilo que poderíamos chamar de “primeiro capitalismo” [8] – difere radicalmente de qualquer realidade anterior aos fins do século XVIII, onde a economia não era uma esfera “autonomizada” e que “sobredeterminava” todas os outros domínios – podendo ser compreendida como uma esfera “lógica e materialmente superior” em relação à determinação de outros campos como o “social”, o “político” ou o “cultural” [9] . Wallerstein permanece junto a Polanyi com a compreensão de que “a lógica de mercado”, em sua conjunção como uma tríade catalática [10], é um advento singular do capitalismo do “longo século XIX”. Também é influenciado pela análise de que as mercadorias fictícias (trabalho, terras e dinheiro) e sua comodificação são adventos particulares deste mesmo período. E simultaneamente herda um modo de análise multidimensional e sistemático, tal como o elaborado por Polanyi em A Grande Transformação [11]. Contudo, Wallerstein permanece em uma esfera historiograficamente marxiana em algumas questões relativas a problemáticas acerca da compreensão da emergência do capitalismo na era moderna – fundamentalmente, no que se refere ao problema de periodização do advento do capitalismo: circunscrita em sua gênese, no âmbito do capitalismo histórico, a meados do século XVI.
3. De Braudel, herda uma “certa” relação com a longa duração e com seus devidos tratamentos histórico-geográficos. Não simplifiquemos: deixemos de lado o tratamento pasteurizado dado ao clássico texto sobre a história, as ciências sociais e esse termo, tão vulgarizado em manuais historiográficos franceses. Deixemos de lado, também, as imagens e referências que de tanto didatismo cristalizaram entre nós relações empobrecidas para a compreensão deste termo, como: acontecimental=dimensão política, conjuntural=dimensão econômica (ciclos), longa duração=tempo geográfico. Tal esquematismo não é de todo errôneo, tem até mesmo seu valor pedagógico, mas permanecer no mesmo é ficar na superfície das questões relativas às distintas durações e suas articulações, tal como proposto pelo próprio Braudel. Com efeito, quem já se debruçou mais de uma vez sobre o clássico artigo História, ciências sociais e a longa duração encontra, no próprio texto, exceções a este modo esquemático generalizante. Entretanto, a proposta da relação da história com as ciências sociais, apresentada por Braudel neste artigo, é algo internalizado por Wallerstein e pelos adeptos da análise de sistemas-mundiais (o que poderíamos denominar como um projeto de complementaridade entre o paradigma idiográfico e o nomotético – tal como é apresentado, desdobrado e aperfeiçoado como proposta em Para abrir as ciências sociais [12]). Além disso, a elaboração da abordagem wallersteiniana toma de Braudel, mas também dos Annales, uma maneira extremamente peculiar de se trabalhar a história econômica. Esse modo de investigação atravessa a obra Civilização Material, Economia e Capitalismo, que tem como coroamento o conceito de economia-mundo [13]. Tal conceito é absorvido por Wallerstein e reelaborado sob uma forte influência da historiografia marxista, e é um dos pilares da construção de sua análise histórica acerca do desenvolvimento do sistema capitalista (tal como presente em sua obra The Modern World-System) [14], estando também presente nos desdobramentos ulteriores do que se tornou conhecido como análise dos sistemas-mundiais. Entretanto, é importante notar que o conceito de economia-mundo – e seus prolongamentos referentes ao plano de análise histórica – foi um ponto de divergência e polêmica entre Braudel e Wallerstein.
Apesar desta tripla influência (Fanon, Polanyi e Braudel) ter sido capital para Wallerstein nos momentos iniciais da elaboração do que viria a se chamar “sistema-mundo”, o conjunto das obras de Polanyi e Braudel tiveram um maior impacto sobre o modo como Wallerstein construiu suas análises. Sintetizando essa dupla influência, podemos dizer que:
A) A herança de Polanyi se denota pela multidimensionalidade da análise que perpassa a forma como Wallerstein constrói sua abordagem: reconhecendo a centralidade da economia mundial, aplica-se o nível global às interfaces das atividades estatais paralelamente aos conflitos de classes e grupos sociais [15];
B) A proposta wallersteiniana é largamente influenciada pela análise de processos históricos multisseculares, conjugando tempo e espaço em múltiplas durações que se relacionam – tal como a noção de longa duração braudeliana pressupõe.
Estas duas características da abordagem wallersteiniana do sistema-mundo moderno e suas fontes serão, portanto, a porta de entrada escolhida para que possamos apresentar uma imagem adequada do seu objeto, assim como da análise de sistemas-mundiais. Assim, o projeto dos próximos textos que se seguem a esse será apresentar, por meio das influências de Polanyi e Braudel, elementos e contribuições fundamentais destes últimos para a constituição da abordagem da análise dos sistemas-mundiais e da compreensão do moderno sistema-mundo de Wallerstein. Desde já, agradeço pela leitura, e até a próxima!
[1] O longo século XIX (1789-1914), supostamente uma “cronologia heterodoxa”, se perfaz na famosa trilogia de Hobsbawm: A Era das Revoluções (1789-1848), A Era do Capital (1848-1875) e o último volume, aqui citado em um trecho da introdução, A Era dos Impérios (1875-1914). A citação de Hobsbawm reproduzida aqui se encontra em: HOBSBAWM, Eric. A era dos Impérios 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2016. p.20. Tal como dito por Hobsbawm, enquanto categoria, o longo século XIX é algo com o qual os historiadores aprenderam a trabalhar.
[2] HALL, Thomas. A World Systems Reader: new perspectives on gender, urbanism, cultures, indigenous peoples and ecology. New York/Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, 2000. p. vii.
[3] WALLERSTEIN, Immanuel; PRIGOGINE, Ilya et al. Para abrir as ciências sociais. Mira-Sintra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
[4] Mais do que uma coleção de autores e nomes, podemos dizer que tradições acadêmicas de várias disciplinas e matizes influenciaram a composição do trabalho de Wallerstein. Em síntese são estas: a economia histórica alemã, a Escola dos Annales na historiografia francesa, o Marxismo (principalmente a historiografia marxista e as diversas linhas neo-marxistas da teoria da dependência). Para mais detalhes, ver: GOLDFRANK, Walter. “Paradigm regained? The rules of Wallerstein’s World-System Method”. In: Journal of world-system research, VI, Vol.II, summer/fall 2000. p.160-165.
[5] Devo a inspiração para esse tipo de abordagem a um livro que li recentemente: WILLIAMS, Gregory. Contesting the global order: the political economy of Perry Anderson e Immanuel Wallerstein. Albany: State University of New York Press, 2020.
[6] Tardiamente, umas das mais fortes influências de Wallerstein foi Ilya Prigogine – com o qual trabalhou conjuntamente no Relatório Para abrir as ciências sociais, e ao qual dedicou uma de suas últimas obras onde estão algumas de suas reflexões epistemológicas mais inovadoras: WALLERSTEIN, Immanuel. The uncertainties of knowledge. Philadelphia: Templeton University Press, 2004.
[7] Aqui replico, de forma sintetizada, a leitura e interpretação de Gregory Williams. Estou longe de ser um especialista na obra de Fanon. Porém, diria que a influência de Fanon sobre Wallerstein pode ser vislumbrada no texto O burguês (a burguesia) como conceito e realidade em Raça, Nação e Classe: Identidades ambíguas, traduzido recentemente pela Boitempo. Para saber mais sobre a abordagem que Williams faz de tal tema ver: WILLIAMS, Gregory. op. cit. p.39-41.
[8] A expressão “primeiro capitalismo” (“primo capitalismo” em italiano ou “early capitalism” em inglês) se relaciona ao arco histórico entre a segunda década do século XIX e a segunda década do século XX para designar a estrutura do “capitalismo clássico”. A Grande Transformação de Polanyi é uma das principais análises deste período. MATTEI, Clara. The Capital Order: how economists invented austerity and paved the way to fascism. Chicago: Chicago University Press, 2022. p.321 (nota).
[9] É importante notar que o próprio Polanyi não pensava deste modo, afinal, parte significativa de sua obra é uma grande crítica a esta “maneira” de conceber a economia. Ver: POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
[10] “Na economia de mercado, o comércio e o dinheiro são organizados através do mercado. O comércio é o movimento de mercadorias através do mercado, e o dinheiro é o meio de troca que facilita isso. Mas comércio e dinheiro são funções de mercado – a tríade cataláctica”. POLANYI, Karl. “General Economic History”. In: Karl Polanyi for a new west. Essays, 1919-1958. Cambridge/Malden: Polity Press, 2014. p. 136 (Livre-tradução). Abordaremos melhor esta questão quando tratarmos da influência de Polanyi sobre Wallerstein.
[11] A maneira como a multidimensionalidade das análises de Polanyi influencia as abordagens de Wallerstein é denotada por comentadores da obra do economista húngaro. Como, por exemplo: BLOCK, Fred; SOMERS, Margareth. The power of market fundamentalism. Karl Polanyi’s critique. Cambridge/London: Harvard University Press, 2014. p. 68-69.
[12] WALLERSTEIN, Immanuel; PRIGOGINE, Ilya et al. op. cit.
[13] A elaboração do conceito de “economia-mundo” é produto dos três tomos de Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV-XVIII. Entretanto, é no primeiro capítulo do terceiro volume da obra que Braudel desenvolve este conceito, que por sua vez se desdobrará analiticamente ao longo desse último livro. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Vol.3. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[14] Nos referimos aqui aos quatro volumes da obra The Modern World-System.
[15] Segundo Block e Somers, foi essa influência de Polanyi na abordagem de Wallerstein que inspirou a articulação dos “três níveis da análise – grupos sociais globais, nacionais e locais – que se tornou objeto de muita discussão após a publicação do livro de Immanuel Wallerstein, O Sistema-Mundo Moderno (1974)”. BLOCK, Fred; SOMERS, Margareth. op. cit. p. 68.