Kojin Karatani e o Transcendental
Ministrante do curso Refundando o materialismo histórico: Kojin Karatani e a Estrutura da História Mundial.
10-15 minutos de leitura
O modelo marxista de base e superestrutura sempre evoca para mim uma imagem da formação social como um prédio de três andares, com um andar térreo econômico e política e ideologia ou cultura como segundo e terceiro. O modelo alternativo de Karatani é mais como três poços de elevador que atravessam a formação social de cima para baixo.
Não estou aqui tentando escrever o tipo de história mundial que ordinariamente é levada à cabo pelos historiadores. O que objetivo fazer é uma crítica transcendental das relações entre os vários modos básicos de troca. Isso significa explicar estruturalmente três grandes mudanças que ocorreram na história mundial.
Ministrante do curso Refundando o materialismo histórico: Kojin Karatani e a Estrutura da História Mundial.
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“Este livro marca uma tentativa de ir além do atual sistema Capital-Estado-Nação, repensando a história das formações sociais a partir da perspectiva dos modos de troca”[i]. É com essa clareza inequívoca que Kojin Karatani abre seu livro seminal, Estrutura da História mundial. O ponto de vista a que o autor alude talvez não seja o mais usual no que se refere a investigações marxistas da história, uma vez que implica uma mudança no próprio critério metodológico daquilo que é costumeiramente entendido como materialismo histórico. Com efeito, ao sugerir a possibilidade de um desenvolvimento histórico com tendências etapísticas, o próprio Marx teria dado a chave da orientação da análise histórica através da noção de modos de produção, ou seja, “épocas progressivas da formação econômica da sociedade”[ii]. Mais detidamente, nas próprias palavras de Marx, isso significaria que o conjunto das relações de produção “constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política”, de forma que o “modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral”[iii].
É fácil de observar, portanto, como tais passagens foram subsequentemente taxadas pela historiografia contemporânea não só como sendo uma visão economicista, mas também teleológica da história. Pois, de fato, há conjugada uma predisposição progressista junto a uma determinação econômica pautada pelo modo produtivo próprio de cada fase no tempo. Não há nada de novo nessas objeções contra Marx. Ao contrário, elas já foram repetidas à exaustão por vários ângulos e disciplinas, seja por aqueles que recusavam uma predominância do aspecto econômico no que se refere à análise social (por exemplo, weberianos e antropólogos), seja pelos próprios historiadores que apontaram a insuficiência tanto de uma leitura teleológica da história como da categorização evolutiva de modos de produção com direta correspondência epocal [iv].
Isso significaria, por conseguinte, abrir mão completamente do arcabouço teórico marxista para a investigação histórica? Segundo Karatani, não. Para tanto, o autor, se alinhando com outras vertentes de pensamento, propõe repensar o próprio materialismo histórico, não a partir da perspectiva do modo de produção, mas daquilo que ele concebe como modos de troca (modes of exchange). Inspirado na obra de Karl Polanyi, a noção de modo de troca romperia com a determinação sequencial e progressiva dos modos de produção ao propor uma lógica de coexistência e não de hierarquia em todas as formações sociais. Para Karatani, há quatro modos de troca: o A que corresponde à reciprocidade (trocas de dom e contra-dom entre clãs ou comunidades distintas em sociedades pré-capitalistas); o B que consiste na noção de redistribuição a partir de uma administração política (ou seja, a partir da estrutura do estado, com sua administração burocrática e seu exército permanente); o C que condiz à troca de mercadorias [v] e, por último, o enigmático modo D que envolve os três anteriores, mas ao mesmo tempo os transcende.
O que garante um caráter de transfiguração no plano de Karatani é o fato de que tais modos, coexistindo nas formações sociais, diferem no sentido de predominância de um em relação ao outro. Assim, por exemplo, é verdade que naquilo que se entende como sociedades pré-capitalistas há uma organização pautada majoritariamente na reciprocidade, mas isso não impede que haja trocas típicas do modo C. O que é determinante no caso dos modos de troca é o fato de que em um determinado ponto espaço-temporal algum desses modos se estabelece como dominante em relações aos demais – o que inclusive define o tipo de formação social, as estruturas institucionais e a atitude dos indivíduos no interior de uma dada localidade em que há esse predomínio. Mas então, como poderíamos descrever a transição de um modo de troca para outro, sem cair em uma orientação evolucionista ou hierárquica?
Aqui, Karatani nos surpreende ao propor um resgate do kantismo a partir daquilo que se entende como transcendental. A influência kantiana aparece em alguns ângulos na obra de Karatani – seja pela ideia de um criticismo baseado na crítica de arte, cuja leitura é fundada na Crítica da Faculdade do Juízo, seja pela noção de “república mundial” ou “reino dos fins”, conceitos originais da filosofia moral de Kant. Contudo, é a própria concepção de transcendental que explica a coexistência e mudança de um modo de troca para outro. Como se sabe, o transcendental em Kant surge de forma inaugural na Crítica da Razão Pura. Já no seu prefácio, no dilema inerente à disciplina metafísica, Kant esboça aquilo que seria um pensamento antinômico em sentido forte: se, por um lado, a razão busca conhecer os objetos metafísicos, por outro, ela cai no risco de admitir a existência de certas entidades cuja comprovação não pode ser plenamente confirmada, uma vez que lhe faltam dados da própria experiência sensível para tal. A revolução copernicana expõe essa crise da razão que, por conseguinte, evolui para uma autolimitação (da razão pela própria razão) no que se refere ao seu escopo epistemológico.
Mas, justaposta a essa ideia de limitação da razão às suas pretensões metafísicas, Kant opera um deslocamento entre duas posições. De um lado, há aquilo que se pode conhecer, o mundo fenomênico, pautado pela causalidade empírica. Do outro, aquilo que corresponde à coisa em si, fora das relações de causa e efeito, lugar da incognoscibilidade que só pode nos proporcionar ideias racionais. O pensamento antinômico significa essa mudança de posição e, portanto, de perspectiva. É tanto possível contemplar um fenômeno quanto conceber uma ideia racional, depende do ponto de vista em que se está. Kant expôs vários exemplos de antinomias ao longo de sua obra, e aquilo que em um primeiro momento se poderia entender como contradições sem solução, para Karatani, quer dizer antes transposição, deslocamento ou, nas suas próprias palavras, transcrítica: o próprio ato de se colocar sob o ponto de vista do outro não de forma corriqueira ou do senso comum, mas como havendo de fato uma mudança de posição, tal como nas antinomias kantianas em que ora se pode estar do lado da tese, ora da antítese [vi]. O sujeito transcendental de Kant possui essa dimensão posicional, de modo que Karatani recupera a transcendentalidade não como restrita a uma subjetividade e a subsequente discussão sobre as faculdades racionais de um Eu universal, mas antes a uma localização ou posicionamento. É isso o que lhe permite transitar pelos modos de troca. Segundo Karatani:
Na história das formações sociais, as mudanças no modo de troca dominante são cruciais; elas produzem transformações radicais. Primeiro, há a mudança para a formação social em que o modo A é dominante; segundo, a mudança para a formação social em que o modo B é dominante; e terceiro, a mudança para a formação social na qual o modo C é dominante. Em outras palavras, essas mudanças levam ao estabelecimento da sociedade de clãs, da sociedade estatal e da sociedade capitalista industrial, respectivamente [vii].
É importante notar, contudo, que na medida em que tais modos coexistem, isso significa que o predomínio de um não implica a exclusão dos demais (ou seja, quando há o predomínio do modo C, isso não significa que o A e B simplesmente desaparecem). Ao contrário, o que ocorre é a reconfiguração dos outros modos a partir da ordem do modo predominante. Os modos “não-dominantes” ganham sua dimensão ou forma específica através de uma ordenação funcional que parte do modo que domina. Para isso, Karatani analisa minuciosamente o que aconteceria no caso do predomínio do modo C, ou seja, no modo de troca das mercadorias sob o ponto de vista do capitalismo consolidado da modernidade em diante. É aqui, portanto, que entra um outro ponto crucial da análise de Karatani, aquilo que ele entende como a trindade Capital-Estado-Nação.
Funcionando como um nó borromeano, esses termos se colocam em uma interrelação ou interdependência. Nesse sentido, embora os campos da política, da economia e da cultura sejam entidades distintas, eles não estão desvinculados ou em total independência, mas antes em uma relação de integração. Vários são os exemplos que ele fornece com amparo tanto nas análise de sistemas-mundo, como na escola dos Annales (principalmente com Fernand Braudel). Os mais relevantes para a explicação do sistema capitalista, principalmente o industrial, é o fato de que 1. o Estado se estabelece como uma entidade política legítima que atua diretamente na proteção do Capital, principalmente industrial; 2. a Nação se expressa como uma unidade que confirma a diferença entre interno/externo, promovendo a própria ideia de identidade nacional. Tais fenômenos se colocam como a própria redefinição dos modos B e A, respectivamente, sob a égide ou predominância do Capital (modo C).
Desse modo, o Estado não apenas assegura o aparato legal, contratual que sustenta a produção industrial, como ainda emprega políticas protecionistas para mercado nacional, juntamente com infraestrutura interna e financiamento de expansão para mercados além-mar – caso especificamente inglês. Pelo lado da Nação, é isso que permite um nível de unificação dos indivíduos, antes em agrupamentos fragmentados e que ganham um sentido de unidade não só territorial e linguística, mas também por uma noção de pertencimento cujas bases às vezes se assentam em elementos afetivos. A Nação pode dar a impressão de ser algo secundário, como um subproduto do Estado ou do Capital, mas é essa instância que provê uma “restauração da comunidade que havia sido enfraquecida pela economia de circulação de mercadorias”[viii]. Não por acaso, a Nação promove uma espécie de sentimento quase religioso, praticamente metafísico.
Como dissemos, Karatani tece toda a sua análise recorrendo à história como corpus de comprovação irredutível. E de fato, embora bastante sintéticos, seus argumentos encontram amplo respaldo em historiadores e cientistas sociais que produziram principalmente em meados do século XX. Porém, uma obra específica parece representar de modo ideal a própria trindade Capital-Estado-Nação, a saber, os Princípios da Filosofia do Direito de Hegel. O próprio Karatani afirma a retomada de Kant como possibilidade para substituição da herança hegeliana no marxismo[ix], o que sugere que ele não parece se fiar tanto em uma ligação entre Hegel e Marx, como alguns marxistas ortodoxos mantêm (por exemplo, Lukács). Mas, além disso, para ele, a Filosofia do Direito parece funcionar como uma espécie de imagem ou reflexo plasmado da própria trinca Capital-Estado-Nação.
Essa atribuição encontra sua justificativa quando analisamos o texto hegeliano e identificamos os seguintes pontos no plano geral desse livro: 1. uma fundamentação teórica que advém do chamado direito abstrato, que assegura a propriedade através de contrato legítimo e respeitado e que, por conseguinte, encontra sua realização em leis positivas, efetivas; 2. o chamado sistema de carências que expõe o problema da subsistência dos indivíduos a partir de um modelo de produção e distribuição, assim como de uma categorização social pautada em estamentos enquanto ofício/profissão (agricultores, comerciantes, industriais); 3. a existência de uma administração do direito como corpo burocrático e de manutenção da ordem (polícia); 4. uma monarquia constitucional que permite um nível de representação dos estamentos em uma câmara de deputados com função legisladora – deputação que, contudo, é formada pelos elementos estamentais, ou seja, pelos próprios grupos que promovem a subsistência da sociedade através da produção/distribuição; 5. a ideia germinal de Nação como unidade orgânica de um povo que, em última análise, permite a diferenciação interna de uma comunidade em contraposição com a exterioridade.
Independentemente de uma suposta preferência pessoal de Karatani por Kant em detrimento de Hegel, a Filosofia do Direito condensa em si o próprio cerne da trindade Capital-Nação-Estado, e não por acaso é esse texto hegeliano que parece mais representar o Espírito de uma época, a própria modernidade, consolidada a partir do predomínio do modo C. A inequívoca clareza de Karatani ainda se manifesta na própria indicação de que a suplantação da interrelação desses termos envolve a própria superação do capitalismo: esse momento de um futuro sem data marcada ou previsão possível, funcionando como ideia reguladora kantiana, é aquilo que Karatani entende como modo D, forma ideal que sequer existe na realidade, com uma natureza que parece religiosa, mas apenas porque “é simplesmente o retorno em uma dimensão mais alta do modo de troca A, aquilo que tem sido reprimido sob o domínio dos modos de troca B e C”[x].
[i] KARATANI, K. The Structure of World History: from Modes of Production to Modes of exchange. Durham and London: Duke University Press, 2014, p. XIII.
[ii] MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia política. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2016, p. 6.
[iii] MARX, K. op. cit., p. 5.
[iv] “Por outro lado, Marx aceitava o universalismo na medida em que aceitava a ideia de uma inevitável marcha histórica rumo ao progresso, com sua antropologia linear. Seus modos de produção pareciam estar alinhados, como meninos na escola – por altura, isto é, de acordo com o grau de desenvolvimento das forças produtivas. (Esta é, de fato, a fonte do agudo embaraço causado pelo conceito do modo de produção asiático, que parecia desempenhar o papel de um estudante indisciplinado que se recusava a seguir as regras e alinhar-se adequadamente)” (BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. Race, Nation, Classe. Ambiguous Identities. London/New York: Verso, 1991, p. 125-126).
[v] Em Polanyi, essas noções são definidas como formas de integração da economia humana e mantêm essa mesma nomenclatura: reciprocidade, redistribuição e troca/mercados. Cf. POLANYI, K. A Subsistência do Homem. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 83-93.
[vi] KARATANI, K. Transcritique. On Kant and Marx. Cambridge: The MIT Press, 2005, p. 49.
[vii] KARATANI, K. The Structure of World History: from Modes of Production to Modes of Exchange. Durham and London: Duke University Press, 2014, p. 31.
[viii] KARATANI, K. The Structure of World History: from Modes of Production to Modes of Exchange. Durham and London: Duke University Press, 2014, p. 216.
[ix] “O Capital é comumente lido em relação à filosofia hegeliana. No meu caso, cheguei a afirmar que é apenas a Crítica da Razão Pura que deve ser lida no cruzamento de referências com o Capital. Daí a interseção Marx/Kant”. KARATANI, K. Transcritique. On Kant and Marx. Cambridge: The MIT Press, 2005, p. IX).
[x] KARATANI, K. The Structure of World History: from Modes of Production to Modes of Exchange. Durham and London: Duke University Press, 2014, p. 230.