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De uma biografia social a um documento de transição em G. W. F. Hegel.

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De uma biografia social a um documento de transição em G. W. F. Hegel.

texto por

Mirian Kussumi

10-15 minutos de leitura

    Como grande parte dos textos clássicos, a Fenomenologia do Espírito se insere em um contexto denso do pensamento filosófico. Bem antes de sua publicação, os temas propostos pelo criticismo kantiano dominavam a cena das discussões acadêmicas, principalmente no que se refere à estrutura subjetiva enquanto formação do Eu moderno. Entre partidários e opositores, a influência kantiana é reconhecida de forma unânime, algo que se percebe sobretudo no caso do idealismo. A partir desse recorte, os sistemas idealistas surgem como uma espécie de resposta ao kantismo, trazendo projetos alternativos com o objetivo de reverter o pensamento dualista de Kant[i]. É dentro desse enquadramento que a Fenomenologia do Espírito se insere, não apenas como modo de reformulação da subjetividade epistemológica, mas também a partir da tentativa de subversão de um Eu atomizado e destacado do mundo e dos outros. A constituição de um sujeito que se forma ao longo do processo dialético entre si mesmo e uma objetividade exterior parece ser o tema central dos primeiros três capítulos da Fenomenologia, culminando na sua passagem mais conhecida, a dialética do senhor e escravo, desenvolvida a partir da relação interrelacional entre o Eu e o Outro[ii].

 

    A saída de uma análise pautada em uma consciência singular atomizada se torna ainda mais radical quando, a partir do Capítulo VI, Hegel desloca sua análise para um Eu coletivo, que se coloca no mundo não a partir de uma finalidade epistemológica, mas na sua articulação com uma multiplicidade de subjetividades. Em última análise, isso denota uma mudança na própria temática da Fenomenologia, que deixa de ser um texto sobre teoria do conhecimento para explorar o que poderia ser considerado uma teoria social. Há uma espécie de movimento progressivo na Fenomenologia no que se refere à constituição da subjetividade, que parte de um indivíduo isolado (singular), se desloca para uma relação entre si e uma outra consciência (dialética do senhor e escravo) e por último, culmina em uma espécie de coletividade de várias consciências (Espírito). É nesse sentido que a noção espiritual da Fenomenologia se determina como uma unidade coletiva, em que os sujeitos se unificam por um laço social.

 

    Aqui se percebe a recorrência de uma outra temática que ocupou o pensamento idealista, a saber a ideia de totalidade orgânica. Esse motivo era também manifesto em outros autores: Schelling considerava a noção de todo orgânico determinante para a sua filosofia da natureza, que por sua vez também é retomada no caso de alguns Românticos.  A ideia de uma organicidade em que se tem partes que confluem com o Todo, formando uma relação interna específica, de articulação e autoconservação, parecia ser comum na atmosfera intelectual da época. Em Hegel, isso aparece como uma espécie de consciência supraindividual, que se engendra como uma unidade subjacente – e que se determina como a própria definição de Espírito:

 

Destaquemos esse Espírito ainda interior como substância já amadurecida em seu ser-aí. O que vemos patentear-se nesse conceito é o reino da eticidade. Com efeito, esse reino não é outra coisa que a absoluta unidade espiritual dos indivíduos em sua efetividade independente. É uma consciência-de-si universal em si, que é tão efetiva em uma outra consciência, que essa tem perfeita independência – ou seja, é uma coisa para ela. [Tão efetiva] que justamente nessa independência está cônscia da sua unidade com a outra, e só nessa unidade com tal essência objetiva é consciência-de-si.[iii]

 

    Essa noção de substância espiritual propõe uma relação bastante sui generis entre o individual e o coletivo: o que além de delinear uma crítica à filosofia da identidade de Schelling, também instaura um ponto consideravelmente relevante no pensamento hegeliano como um todo, a saber, a relação entre singular, particular e universal. O Eu que Hegel propõe é simultaneamente individual e coletivo. Essa conciliação significa, desse modo, que Hegel tanto considera a subjetividade enquanto sujeito finito, como também em sua dimensão de universalidade que, longe de significar a supressão do individual, quer dizer antes a sua participação nessa unidade orgânica coletiva que é a substância espiritual. É nesse sentido que podemos compreender o que Hegel quis dizer com o mundo da eticidade ou vida ética. Se o momento de maior desenvolvimento da subjetividade (nas palavras hegelianas, a verdade da consciência) é a instância espiritual, essa coletividade que indicamos acima, isso significa que o modo de ser do Eu que lhe é mais adequado, mais próprio de si, é a vida comunitária. As ressonâncias aristotélicas reaparecem aqui, pois esse sentido de comunidade (que podemos definir como um comunitarismo) retoma a velha concepção de Aristóteles do homem como ser social – como animal que encontra sua mais alta realização na vida coletiva.

 

    A instância espiritual, portanto, não quer dizer um agrupamento artificial. Tampouco é construída a partir de uma coação ou obrigatoriedade. Sua organicidade denota antes uma espécie de caminho natural da consciência individual. Assim, na medida em que a organização coletiva da eticidade não significa um movimento de deflação subjetiva, mas antes, o ápice de desenvolvimento da subjetividade, observamos de que modo não se trata de uma diminuição da liberdade do Eu. A linha argumentativa seguida por Hegel, portanto, é o que o faz afirmar que a Totalidade da substância ética, ao invés de significar a perda da liberdade subjetiva (como é o caso dos contratualistas), é, na verdade, o ápice da vontade livre, algo que reaparece anos mais tarde na Filosofia do Direito [iv].

 

    Seria, contudo, equivocado pensar que esse último texto apresentaria apenas uma continuação do que estava elaborado na Fenomenologia. De certo modo, a noção de Estado hegeliana mantém viva a concepção de uma totalidade orgânica dos sujeitos, conscientemente unificados no interior da instância estatal[v]. Mas o que difere a Fenomenologia da Filosofia do Direito? Essa questão poderia ser reformulada de outro modo: no que se refere à filosofia política, o que há de diferente entre a alternativa hegeliana de juventude para seu projeto maduro, sistematizado no seu conceito de Estado? Não seria possível apontar um único elemento diferencial, mas, a nosso ver, existe um momento na obra hegeliana madura que se mostra como indispensável para essa compreensão: aquilo que Hegel determinou como sistema de carências.

 

    A Filosofia do Direito apresenta três ordens objetivas de organização social – a família, a sociedade civil e, finalmente, o Estado.  Esses temas já estavam esboçados na Fenomenologia na medida em que Hegel já havia introjetado a separação entre uma esfera privada, familiar, e uma esfera pública, pautada em reconhecimento de cidadania. Mas o que Hegel não havia proposto de modo tão claro era como a sociedade civil é o espaço de coexistência entre direitos civis e um tipo de produção e redistribuição econômicas. Aquilo que Hegel define sob a alcunha de sistema de carências significa a participação individual em um sistema produtivo enquanto contribuição no aumento da riqueza do Estado. E é por causa disso que há um retorno distributivo enquanto parte que lhe é cabida[vi]. Hegel já havia elaborado uma análise sobre trabalho e sobre diferentes estamentos definidos por um critério profissional, assim como a ideia de produção para a subsistência do Todo[vii]. Mas é na Filosofia do Direito que todos esses fatores ganham uma articulação sistemática. Se por um lado a sociedade civil é o lugar de um universalismo formal (sustentado por direitos civis como disposição de propriedade privada e contratos firmados e válidos)[viii], por outro, é também o lugar da produtividade enquanto modo de satisfazer as carências materiais da sociedade. Há, assim, a formação tanto da identidade social (que poderíamos entender como status), quanto de classes produtivas.

 

    Nesse sentido, uma das diferenças essenciais entre a Fenomenologia e a Filosofia do Direito é como Hegel produz uma investigação pormenorizada da sociedade civil, não a partir da sua união substancial e coletiva, mas como o domínio em que os indivíduos são vistos ora como cidadãos, ora como partes de um sistema produtivo para a manutenção material do Todo. A partir da organização estamental (ou seja, como grupos profissionais ou “proto-classes”), Hegel sugere uma realidade tripla (social, econômica e política) que: 1. Tanto significa a posição de alguém em um grupo profissional, respaldado pelo direito de propriedade e de formação contratual quanto 2. A atividade produtiva que alguém opera no sistema de carências, quanto, por fim, 3. A partir da possibilidade de organização corporativa desses estamentos que fundará um sistema de representação legislativa em assembleias com direito a elaboração de leis[ix].

 

    O que Hegel oferece na Filosofia do Direito nada mais é do que a descrição de um capitalismo nascente – que tanto diz respeito a um aparato legal para a proteção de que os indivíduos possam perseguir seus interesses desimpedidamente, a uma divisão do trabalho a partir de classes (estamentos), uma representação política dos interesses dessas classes e um corpo burocrático e de controle não só para assegurar quanto para auxiliar em todos esses processos.  É desse modo que a Filosofia do Direito parece se constituir como um documento de transição – em que se observa a descrição, testemunhada pelo próprio Hegel, daquilo que será entendido como mundo capitalista moderno. Trata-se da exposição da transição entre uma realidade feudal para a modernidade, seja pelo seu âmbito econômico através do sistema de carências, seja pelo social com a organização estamental, seja pelo político, com a cristalização da forma Estado-Nação (que por sua vez é defendida como uma monarquia constitucional).

 

   Enquanto a Fenomenologia apresentava um tipo de organização comunitária, entendida pela chave da coletividade substancial ética, que demonstrava o próprio processo consciente de um Eu individual que se entendia finalmente como parte integrante de um Todo social, a Filosofia do Direito serve como uma espécie de radiografia do momento específico em que o capitalismo se consolida. Embora, em um primeiro momento, seja possível argumentar que o laço social comunitário da Fenomenologia teria se perdido plenamente na Filosofia do Direito, antes, ele se reatualiza: o sentimento de pertencimento grupal que antes estava posto na família (o que inclusive garante que relações familiares sejam marcadas por afetividade, não por racionalidade) reaparece tanto nas corporações, ou seja, agremiações e associações que unem indivíduos do mesmo estamento como uma segunda família. E mais ainda, ressurge também no Estado enquanto domínio que suprassume o individualismo possessivo da sociedade civil, e que se funda nos interesses e na vontade gerais.

 

   Essa garantia do vínculo coletivo persiste inclusive se valendo do sentimento nacionalista como assegurador da própria harmonia do Estado[x]. A concepção de Nação possui uma adequação exemplar no caso da Filosofia do Direito, uma vez que é determinante para o sentimento de confiança de se fazer parte de algo, de ter uma comunhão dos próprios interesses com os interesses daqueles ao seu redor[xi]. O sentimento quase religioso de participação que só encontra correlato no núcleo familiar, na organização clânica, ou seja, na interioridade daquilo que se entende como comunidade.  

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Mirian Kussumi

10-15 minutos de leitura

"O Eu que Hegel propõe é simultaneamente individual e coletivo. Essa conciliação significa, desse modo, que Hegel tanto considera a subjetividade enquanto sujeito finito, como também em sua dimensão de universalidade que, longe de significar a supressão do individual, quer dizer antes a sua participação nessa unidade orgânica coletiva que é a substância espiritual. É nesse sentido que podemos compreender o que Hegel quis dizer com o mundo da eticidade ou vida ética'”.

"Enquanto a Fenomenologia apresentava um tipo de organização comunitária, entendida pela chave da coletividade substancial ética, que demonstrava o próprio processo consciente de um Eu individual que se entendia finalmente como parte integrante de um Todo social, a Filosofia do Direito serve como uma espécie de radiografia do momento específico em que o capitalismo se consolida".

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NOTAS:

[i] SEDGEWICK, S. Introduction: Idealism from Kant to Hegel. In: SEDGEWICK, S. The Reception of Kant’s Critical Philosophy: Fichte, Schelling, and Hegel. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 1-19.

 

[ii] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2014, § 178-196.

 

[iii] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2014, §349.

 

[iv] “O Estado é a efetividade da liberdade concreta; ora, a liberdade concreta consiste em que a singularidade pessoal e os seus interesses particulares tanto tenham o seu desenvolvimento completo e o reconhecimento do seu direito para si (no sistema da família e da sociedade civil) quanto, em parte, passem por si mesmos ao interesse do universal, em parte, com saber e vontade, reconheçam-no como o seu espírito substancial e sejam ativos a favor do universal enquanto seu fim-último” (HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução: Marcos Lutz Müller. São Paulo: Editora 34, 2022, §260).

 

[v] “O princípio dos Estados modernos tem esse vigor e esta profundidade prodigiosos de deixar o princípio da subjetividade completar-se até o extremo autônomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, de reconduzi-lo à unidade substancial e, assim, de manter essa unidade no princípio mesmo da subjetividade” (HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução: Marcos Lutz Müller. São Paulo: Editora 34, 2022, §260)

 

[vi] HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução: Marcos Lutz Müller. São Paulo: Editora 34, 2022, §199 e §200.

 

[vii] HEGEL, G. W. F. System of Ethical Life and First Philosophy of Spirit. State University of New York Press Albany 1979, p. 149-167.

 

[viii] HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução: Marcos Lutz Müller. São Paulo: Editora 34, 2022, §208.

 

[ix] HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução: Marcos Lutz Müller. São Paulo: Editora 34, 2022, §308.

 

[x] É nesse sentido que podemos ler a tese de Karatani de que o mundo capitalista moderno se constitui pela coexistência e dependência recíproca entre três domínios, o Estado, o Capital e a Nação. Ver: KARATANI, K. The Structure of World History: From Modes of Production to Modes of Exchange. Durham: Duke University Press, 2014.   

 

[xi] HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução: Marcos Lutz Müller. São Paulo: Editora 34, 2022, §268.