Ministrante do curso Refundando o materialismo histórico: Kojin Karatani e a Estrutura da História Mundial.
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Em 1988, em um livro compartilhado com Étienne Balibar, Immanuel Wallerstein afirmou:
“À medida que a economia-mundo capitalista se expandiu de sua localização primordial, principalmente na Europa, e que as concentrações dos processos de produção central e periférica tornaram-se cada vez mais díspares geograficamente, categorias raciais começaram a se cristalizar em torno de certos rótulos. […] raça e, portanto, o racismo, é a expressão, o promotor e a consequência das concentrações geográficas associadas ao eixo da divisão de trabalho”[i].
É importante colocar em relevo a principal ideia de Wallerstein nessa passagem: não se trata de declarar a inexistência de diferenças étnicas em um momento histórico anterior ao capitalismo, uma vez que tais distinções eram obviamente presentes em civilizações pré-modernas. Antes, o que Wallerstein parece sustentar é a noção de que o capitalismo, enquanto sistema econômico autossuficiente, que tende à sua própria expansão, tem como propriedade intrínseca concentrar processos de produção que obedecem uma ordem geográfica, ou seja, que se orientam por uma lógica cujo critério parece ser a localidade em que determinada região se situa – o que remonta à sua teoria central do sistema-mundo enquanto composto por áreas de centro, semiperiferia e periferia do capitalismo.
É pela própria divisão do trabalho engendrada pelo capitalismo que tais áreas ganham especificidade ou função nesse sistema-mundo: o modo de organização do capitalismo é determinante para que suas periferias concentrem uma produção econômica baseada em exportação de matéria-prima, sendo sustentada por uma atividade laboral com poucas qualificações educacionais e profissionais, extremamente informal e sem regulações jurídicas. O outro lado da moeda, contraparte necessária, é a existência de um centro que é determinado pelo que a periferia não é – ou seja, com uma concentração produtiva de amplo desenvolvimento econômico e tecnológico, com relações de trabalho bem regulamentadas e bem remuneradas (altamente “proletarianizadas”, para utilizar os termos de Wallerstein), com altos índices educacionais e que, fundamentalmente, possui a função de apropriação e exploração das áreas mais periféricas.
Marcadas pelo estigma periférico, dentro desse arranjo global, as distinções étnicas se fundam por uma clivagem que encontra sua razão de ser na própria organização do capitalismo. Este, por sua vez, é efetivado por uma divisão internacional do trabalho disposta entre indivíduos do centro, cujo trabalho formal, assegurado e remunerado se contrapõe pelo seu oposto necessário, condições de trabalho definidas por exploração, informalidade e má-remuneração. Então, mais uma vez, não é como se as diferenças étnicas fossem inexistentes antes do capitalismo, mas as mesmas só são sistematizadas como diferenças raciais, de modo estruturado e institucionalizado, dentro da economia-mundo capitalista. E, enquanto sistema altamente desigual, é aí que se consolida o racismo em sua dimensão sistêmica, regulamentada, generalizada.
E o mesmo acontece com a divisão de gênero – mesmo que, quantitativamente, Wallerstein tenha abordado menos esse recorte. Assim como a divisão do trabalho sob uma perspectiva do sistema-mundo determina a diferenciação racial e, por consequência, engendra uma hierarquia de superioridade e inferioridade que afeta domínios como o moral, o simbólico, o intelectual etc., essa mesma dinâmica se efetiva a partir da diferença de gênero entre homens e mulheres. De modo sucinto, tal diferença se traduz e se consolida no âmbito do trabalho – e é por isso que se abre um problema que mobiliza o próprio feminismo.
Isso ocorre, principalmente, em dois eixos fundamentais: tanto em relação ao trabalho doméstico como meio de reprodução social que, contudo, não é reconhecido como trabalho em sentido forte (principalmente por não ter remuneração correspondente), mas também pelo fato de as mulheres exercerem atividades mais informais e/ou com menor qualificação profissional. São, portanto, mais enquadradas em ocupações ditas “próprias do seu gênero” (funções referentes a cuidados como enfermeiras e cuidadoras, trabalho doméstico terceirizado como faxineiras e babás) ou simplesmente de subordinação servil (secretárias, comissárias de bordo) ou com menor valor social (trabalhadoras em empresas e fábricas em funções menores, de meio-período, normalmente exercendo um trabalho manual). Não é preciso falar que se trata justamente das atividades de menor remuneração, o que pode ser comprovado pela diferença de salários mundialmente reconhecida.
Mas onde e como, de fato, esse recorte de gênero começa? Maria Mies em seu texto clássico “Patriarcado e acumulação em escala global”[ii] explica a gênese desse processo. E assim como no caso étnico, embora a opressão dirigida contra as mulheres em períodos pré-capitalistas fosse algo comum, é no momento de consolidação de tal economia-mundo capitalista que uma dinâmica de exploração de gênero se torna institucionalizada em escala global. O momento determinante para essa transformação se deu por aquilo que a autora (entre outras) aponta como o movimento de transformação das mulheres em donas de casa (“housewifization”). Primeiramente como uma tendência inserida no capitalismo mercantil, na ideia de mulheres que se restringem ao seu lar e se tornam consumidoras de artigos de luxo fornecidos pelo homem, principalmente, o marido, isso se alarga subsequentemente para o próprio espectro familiar – fixado na modernidade em diante como família nuclear.
É aí que se observa a prevalência de duas funções bastante definidas: de um lado o marido como o ganha pão da família que sai e trabalha para o sustento de todos, do outro, a mulher, restrita ao âmbito privado do lar, encarregada do trabalho doméstico e da reprodução sexual. Trata-se, portanto, do início da atribuição às mulheres dessa função de dona de casa, que se encarrega da criação dos filhos, da organização do lar, das refeições, do vestuário, da limpeza etc[iii]. Enquanto o homem produz e provê, a mulher consome e reproduz. Entendido dentro da teoria do sistema-mundo, isso significa que enquanto o homem possui um trabalho “proletarianizado”, remunerado e formal, às mulheres ficam ao encargo do trabalho informal e doméstico, até mesmo confundido com demonstrações de amor e cuidado[iv], efetivados às vezes em momentos de “lazer”.
Mas elas de fato trabalham. E trabalham às vezes não apenas no âmbito do lar. É aqui que a organização trinitária entre centro-semiperiferia-periferia entra em jogo. Já no processo colonizador do capitalismo mercantil estava delineada uma divisão internacional do trabalho baseada na subjugação e exploração da colônia em relação à metrópole. Sua lógica já estava colocada como uma relação contraditória ente progresso e “atraso”[v]. Mas já na década de 70, com o intuito de assegurar o crescimento econômico do pós-guerra, países industrializados, com suas grandes corporações nacionais e internacionais, levam a cabo um movimento de deslocamento industrial para os ditos países subdesenvolvidos. E não só para a produção de bens de consumo, mas também para um agronegócio destinado para a exportação – e é aqui, então, que a mulher do terceiro mundo é descoberta. O capitalismo é desde sempre um sistema de acumulação que busca sua constante expansão[vi]. Inserir mulheres na periferia nesse sistema cai como um luva, principalmente porque:
“1. As indústrias realocadas, o agronegócio e outras empresas voltadas para a exportação devem poder encontrar nos países subdesenvolvidos os trabalhadores mais baratos, mais dóceis e mais manipuláveis, a fim de reduzir ao máximo os custos de produção. 2. Essas corporações devem mobilizar os consumidores dos países ricos para comprar todos os itens produzidos nos países do Terceiro Mundo. Em ambas as estratégias, a mobilização das mulheres desempenha um papel essencial”.[vii]
Voltamos, desse modo, ao próprio sistema-mundo dividido entre centro-semiperiferia-periferia. O impacto do que se entende como nova divisão internacional do trabalho e a própria inserção dos ditos países de terceiro mundo no mercado global possui como efeito imediato e arrasador a própria exclusão das mulheres do acesso a remuneração digna, novas habilidades profissionais e propriedade produtiva, reproduzindo o lugar da mulher como dependente, “donas de casa, independentemente do fato de que em muitos casos – como, por exemplo, na África – elas ainda desempenham o papel mais crucial na produção de subsistência”[viii].
Obviamente Mies não conseguiu dar conta de uma análise mais contemporânea das relações de trabalho e de como o gênero é determinante para tal no mundo atual, visto que sua obra se concentra majoritariamente nas décadas de 80 e 90. Porém, é visível que suas considerações não só encontram eco nos dias de hoje, como ainda o estado contemporâneo do sistema-mundo capitalista parece demonstrar um agravamento ou radicalização do que ela já preconizava há quase quarenta anos atrás. Suas análises se confirmaram como certas principalmente no que se refere à condição de exploração das mulheres no âmbito de países da periferia. Cada vez mais as relações de trabalho se tornam mais informais, mais precarizadas, menos remuneradas e garantidas juridicamente. As mulheres continuam responsáveis pela maior parte do trabalho doméstico referente à reprodução social, elas seguem sendo menos remuneradas proporcionalmente aos homens, sobretudo as mulheres em situação de vulnerabilidade e em classes mais baixas.
Mesmo que as mulheres tenham entrado de vez no mercado de trabalho e hoje estejam em alguns cargos mais altos e de maior valor social (representação política, cargos de liderança e de gerenciamento no setor privado), mesmo assim, a grande maioria ainda se insere em funções de menor remuneração (e, portanto, de exploração) e de menor reconhecimento social. E essa realidade é essencialmente visível nos países periféricos. É isso que atestam as pesquisas mais recentes sobre mundo do trabalho, inclusive no caso brasileiro, que tende a uma flexibilização cada vez maior no trabalho, principalmente no que se refere às mulheres[ix].
Essas análises não apenas comprovam que o feminismo não deve ser lido apenas como uma questão cultural ou simbólica (como seus adversários vagamente acusam de ser uma questão meramente “identitária”), como ainda a necessidade de que se retomem discussões voltadas para o próprio capitalismo enquanto sistema global (uma economia-mundo) que se calca em uma dinâmica de opressão mas, acima de tudo, de exploração. Uma exploração que não se dá de modo horizontalizado e uniforme, mas que parece ter um foco bastante específico e que direciona suas piores facetas ao grupos mais vulneráveis dos lugares periféricos mais vulneráveis, entre eles, as mulheres.
Ministrante do curso Refundando o materialismo histórico: Kojin Karatani e a Estrutura da História Mundial.
10-15 minutos de leitura
[i] BALIBAR, Étienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Nation, Classe. Ambiguous Identities. London/New York: Verso, 1991, p. 80.
[ii] MIES, Maria. Patriarchy and Accumulation On a Global Scale. London: Zed Books, 1986.
[iii] O próprio trabalho doméstico que feministas não só problematizaram e lutaram para ser remunerado (DELLA COSTA, Mariarosa; JAMES, Selma James. The Power of Women and the Subversion of the Community. London: Falling Wall Press, 1972), mas também que o indicaram como a faceta invisibilizada do capitalismo que, contudo, funciona como uma espécie de condição de possibilidade para que ele de fato funcione (FRASER, Nancy. ‘Behind Marx’s Hidden Abode: for an expand concept of Capitalism”. In: Critical Theory in Critical Times. New York: Columbia University Press, 2017).
[iv] FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução. São Paulo: Elefante, 2019.
[v] MIES, Maria. Patriarchy and Accumulation On a Global Scale. London: Zed Books, 1986, p. 112.
[vi] WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e Civilização capitalista. Rio deJaneiro: Contraponto, 1995, p. 121-122.
[vii] MIES, Maria. Patriarchy and Accumulation On a Global Scale. London: Zed Books, 1986, p. 114.
[viii] MIES, Maria. Patriarchy and Accumulation On a Global Scale. London: Zed Books, 1986, p. 115.
[ix] Segundo Ludmila Abílio: “Voltando para os salões de beleza, o trabalho tipicamente feminino oferece-nos as raízes da flexibilização do trabalho que atravessa o mercado de cima a baixo. A indistinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho, a fusão entre esfera profissional e esfera privada e a impossibilidade de mediações publicamente instituídas na regulação do trabalho, a indefinição quanto ao que é e o que não é trabalho são alguns dos elementos que costuram a vida das mulheres. No mais precário trabalho da costureira em domicílio, da empregada doméstica, da dona de casa podemos encontrar elementos que hoje tecem a exploração do trabalho de forma generalizada. Olhando para uma ocupação tipicamente feminina, foi possível reconhecer tendências em curso no mercado de trabalho que hoje desembocam na forma visível da uberização”. In: Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Acesso em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao/